terça-feira, 6 de outubro de 2015

Deus connosco (Is 7, 14b)

O verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Maria torna-se assim o novo Templo de Deus na humanidade, a Arca da Nova e definitiva Aliança. O verbo grego que se traduz por habitou, tem o mesmo radical que a palavra hebraica que definia a ideia da Presença Divina no Templo de Sião. Assim, podemos fazer a ponte e afirmar a mesma presença de Deus na Tenda da Reunião (Ex 26) e no seio de Maria.

Deus irrompe no tempo, entra na nossa história, monta a Sua tenda no nosso meio, o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, o Amor absoluto encerra-se num coração de carne, o sorriso do Pai escuta-se no choro de um bébé “envolto em panos e deitado numa manjedoura” (Lc 2, 12), Emanuel, o Deus connosco (cf. Mt 1, 23), Yeshua (Jesus), Deus salva.

Deus manifesta-se na fragilidade de uma criança que nasce fora da sumptuosidade dos palácios, das riquezas materiais e da estrutura hierárquica religiosa e civil do Seu tempo. Quem procurava Deus e continua hoje em dia a buscar Deus nos grandes sinais exteriores e magnificos, não O encontrará certamente. Deus manifestou-se na humildade de uma criança tal como já se havia manifestado a Elias sob a forma de uma brisa suave (cf. 1Rs 19, 11-14). Deus não se encontra no trovão ou na tempestade, mas nas coisas simples da vida. Deus fala no silêncio de uma criança. A homilia de Natal proferida pelo Padre Alberto Neto em 1971 continua actual ainda hoje. Dizia o Padre Alberto “E Deus, hoje, para calar o nosso falar palrador e mentiroso, não fala. Deus, hoje, é criança, é bebé. Hoje não há palavras. Urge cantar o Seu silêncio que, no entanto, impressiona mais e incomoda mais que os mais célebres discursos dos oradores da terra.”

Lucas procura situar historicamente e no tempo o acontecimento do nascimento de Jesus. Os apontamentos de Lucas são intencionais ao situar a natividade no momento do recenseamento “de toda a terra”. Temos um contexto histórico e temporal. Jesus nasceu durante o recensamento de toda a terra ordenado pelo Imperador romano César Augusto e quando Quirino era procurador na Síria. Assim, o nascimento de Jesus ganha uma dimensão ecuménica, pois Jesus não marcou apenas a história local, mas universal. Num outro apontamento, de ordem teológica, Lucas aponta o contraste entre os poderosos do tempo e a ordem de César Augusto que submete à sua vontade todos os povos conquistados, à pobreza do Salvador que nem sequer alojamento tem para vir ao mundo. Assim, Lucas quer dizer que “a salvação não se obtém segundo medidas humanas, pelo contrário, existe uma oposição estridente entre a altissonância do nome de César e o facto de o verdadeiro Salvador, o verdadeiro Senhor ser obrigado a nascer numa manjedoura” (Carlo Maria Martini, in Liberdade que se dá).

O Evangelho de Lucas coloca o centro do anúncio do nascimento de Jesus na mensagem do coro celestial “Hoje nasceu para vós, na cidade de David, um salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2, 11). A afirmação central de todo o Evangelho faz eco da profecia do profeta Isaías “Um menino nasceu para nós e o seu nome será Conselheiro admirável, Deus poderoso” (Is 9, 5); “um rebento da raiz de Jessé” (Is 11, 1). Para os judeus, a palavra salvador era entendida como o salvador, na linha de Móises, que salvou o povo de Israel do Egito ou dos reis Saúl e David que salvaram o

povo dos inimigos. Mas Jesus vem para que toda a humanidade chegue e conheça o Pai. Assim, a missão de Jesus é salvar toda a humanidade.

Jesus é Cristo Senhor. Reconhecer Jesus como Senhor é afirmar a sua divindade, proclamar já a fé pascal no Cristo Ressuscitado. De uma forma tão simples e sincera o Apóstolo Tomé reconhece o senhorio de Jesus quando diz “Meu Senhor e meu Deus”.

O Cardeal Carlo Maria Martini numa meditação sobre o Natal aponta dois paralelos entre o relato do nascimento de Jesus e o relato da Sua paixão: o primeiro é “a referência à manjedoura. «reclinou-o numa manjedoura» (Lc 2, 7). O mesmo termo será usado por Lucas mais tarde, quando um homem de nome José de Arimateia, membro do sinédrio, pessoa boa e justa, reclinou na tumba o corpo de Jesus (cf. Lc 23, 53). Reclina-se um corpo que se deixa passivamente levar. O evangelista parece aludir à relação entre a manjedoura e a cruz, como se dissesse que a manjedoura é o lugar que convém ao Filho de Deus como lhe convirá o lenho da cruz e o berço do sepulcro. Este é o destino do Messias e o seu dever ser: assim, Jesus é e será o salvador.

O segundo detalhe interessante está na palavra traduzida por estalagem, pois não havia lugar para eles na estalagem. A mesma palavra será aplicada para designar o local (Cenáculo) no qual Jesus celebrará a Páscoa com os discípulos ( Lc 22, 1). Jesus nem tinha lugar no que era seu de direito. O facto de José ter que ir obrigatoriamente a Belém para se recensear, implica que ele pudesse atestar, de acordo com a tradição hebraica, a posse de um pedacinho de terra ou de uma pequena habitação. Porém, quando chega a Belém, não há lugar para ele, a estalagem (compartimento) estava lotada, restando apenas a manjedoura.»

Um menino sem casa, nem berço, nem tecto é, contudo, o salvador, o Cristo, o Senhor, o libertador do povo, o Deus que faz caminho connosco.

Assim nasceu Jesus. “Não abriu as águas como Móises, mas caminhou sobre estas sem se molhar. Não criou o fruto da videira, mas soube, numa festa, vindimar vinho da água. Não criou o sol, o fogo, nem a lua ou as estrelas já criadas, mas deu a vista aos cegos, e este é um modo de inventar a luz. Nascesse hoje, e seria num barco de imigrados atirado ao mar juntamente com a mãe. Depois Dele, ninguém é residente, mas todos são refugiados à espera de um visto” (Erri De Luca, in Caroço de Azeitona).

O mundo de hoje preenche os seus vazios com falsos deuses, negando a existência do verdadeiro e único Deus, o Deus de Jesus Cristo. O mundo que insiste em afirmar a ausência de Deus, esquece-se que é o homem o grande ausente. Já há dois mil anos foram os pastores (mal vistos pela sociedade) os primeiros a responderem à alegre notícia dada pelos anjos, porque pobres e despojados de tudo que nos afasta de Deus, acolheram a alegria do nascimento do Messias esperado. “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1, 11).

Nuno Monteiro (Natal de 2011)

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